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Preto e Branco - Os dois lados do autor

sábado, 17 de setembro de 2011

Preto e Branco
Luis Fernando Veríssimo

Um palco vazio. Entram dois homens, um vestido de preto e o outro vestido de branco. Eles representam os dois lados do Autor. Isso a platéia já sabe porque está escrito no programa. Pelo Autor. Ou por um dos lados do Autor, já que o outro era contra. O outro lado do Autor queria que o espectador deduzisse no transcorrer do diálogo que os dois atores representam a mesma pessoa, porque, na sua opinião, dar muitas explicações para a platéia subverte a relação de cumplicidade misturada com hostilidade que deve existir entre palco e público, e nada destrói este clima mais depressa do que o público descobrir que está entendendo tudo. Os dois lados do Autor discutiram muito sobre isto e prevaleceu o lado que queria ser perfeitamente claro, mesmo com o perigo de frustrar o público. Palco vazio. Dois homens, representando os dois lados do Autor. Um todo de preto, o outro todo de branco.
Homem de Branco - Preto.
Homem de Preto - Branco.
Branco - Por que não cinza?
Preto - Vem você com essa sua absurda mania de conciliação. Essa volúpia pelo entendimento. Essa tara pelo meio-termo!
Branco - Se não fosse isso, nós não estaríamos aqui. Foi minha moderação que nos manteve longe de brigas. Foi minha ponderação que nos preservou. Se eu fosse atrás de você ...
Preto - Nós teríamos vivido! Pouco, mas com um brilho intenso. Teríamos dito tudo que nos viesse à cabeça. Distinguido o pão do queijo com audácia. Posto pingos destemidos em todos os "is". Dado nome completo a todos os bois! .
Branco - Em vez disso, fomos civilizados. Isto é, contidos e cordatos.
Preto - E temos os tiques nervosos para provar.
Branco - Você preferiria ter dito a piada que magoaria o amigo? A verdade que destruiria o amor? O insulto que nos levaria ao Pronto-Socorro, setor de traumatismo?
Preto - Preferiria. Para poder dizer que não me calei. Para poder dizer "Eu disse!"
Branco - Ainda bem que não é você que manda em nós.
Preto - Não, é você. Sempre fazemos o que você determina. Ou não fazemos. Não dizemos. Não vivemos! Estou dentro de você, fazendo, dizendo e vivendo só em pensamento.
Se ao menos eu pudesse sair aos sábados ...
Branco - Para que, para nos matar? Pior, para nos envergonhar?
Preto - Melhor se envergonhar pelo dito e o feito do que pelo não dito e o adiado.
Você sabe que cada soco que um homem não dá encurta a sua vida em 17 dias? E cada
vez que um homem pensa em sair dançando um bolero e se controla, seu fígado aumenta?
E cada ...
Branco - Bobagem. Ainda bem que eu sou o verdadeiro nós.
Preto - Não, eu sou o verdadeiro você.
Branco - Você só é nós em pensamento. Você é a minha abstração.
Preto - Sou tudo o que em nós é autêntico e não reprimido. Ou seja: você é a minha falsificação.
Branco - Você não é uma pessoa, é uma impulsão.
Preto - Você não é uma pessoa, é uma interrupção.
Branco - Mas quem aparece sou eu.
Preto - Então o que eu estou fazendo neste palco, e ainda por cima de malha justa?
Branco - Você só está aqui como uma velha tradição teatral, o interlocutor. Um artifício cênico, para o Autor não falar sozinho. "Escrever diálogos é a única maneira respeitável de você se contradizer." Tom Stoppard.
Preto - Quer dizer que eu só entrei em cena para dizer ...
Branco - Branco. E eu ...
Preto - Preto. Por quê?
Branco - Para mostrar à platéia que todo homem é a soma, ou a mescla, das suas contradições. Que no fim o destino comum de todos, cremados ou não cremados, não é ser branco ou preto, é ser cinza.
Preto - Mostrar a quem?
Branco - À pla ... Onde está a platéia?!
Preto - Foram todos embora.
Branco - Será porque não entenderam o diálogo?
Preto - Acho que foi porque entenderam.